sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Realidade e utopia em educação

As tendências pedagógicas têm basicamente sua origem em movimentos sociais, filosóficos e antropológicos em determinados momentos da história humana, e terminam assim por influenciar as práticas pedagógicas associadas às expectativas da sociedade. Neste caso é importante o conhecimento de tais tendências a fim de se construir conscientemente uma trajetória político-pedagógica própria. Somente a partir deste conhecimento, e de autoconhecimento é que se poderá propor mudanças a fim de transformar fazeres e saberes, problematizando-os, inserindo-os no cotidiano e na própria expressão do profissional da educação.
Assim, este texto tem por objetivo confrontar as teorias de Bourdieu e Dewey, além de levantar questionamentos e tentativas de aproximações com a questão da diversidade cultural, expressa na Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (2002) aprovada pela UNESCO.
Bourdieu declara que a escola é uma instituição de legitimação de privilégios, segundo a leitura de Nogueira e Nogueira (2002, p. 17), afirmação que é, acima de tudo, uma constatação. Trata-se, portanto, de uma inversão total de ponto de vista em relação à Dewey, que concebe a educação como uma doutrina pedagógica específica da sociedade democrática. O modelo democrático do qual fala Dewey é o da igualdade das oportunidades, não o da igualdade entre os homens.
Se para Bourdieu a escola não é uma instituição imparcial que seleciona meramente os mais talentosos a partir de critérios objetivos, para Dewey a escola é o instrumento ideal para estender para todos os indivíduos os seus benefícios, tendo a educação uma função democratizadora de igualar as oportunidades. A escola seria na perspectiva deweyana, uma instituição neutra, que difundiria um conhecimento racional e objetivo e que selecionaria seus alunos com base em critérios racionais.
Bourdieu questiona com franqueza impiedosa a neutralidade da escola e do conhecimento dela advindo, sustentando que o que ela representa e exige dos alunos são os gostos, as crenças, as posturas e os valores dos grupos dominantes, dissimuladamente apresentados como cultura universal.
Dewey vê a educação como uma necessidade social, onde os indivíduos precisam ser educados para que se assegure a continuidade social, transmitindo suas crenças, idéias e conhecimentos. Ele vê a escola voltada aos reais interesses dos alunos, valorizando sua curiosidade natural.
Em linhas gerais, para Bourdieu (1998, p. 53) a escola é uma instituição a serviço da reprodução e legitimação da dominação exercida pelas classes dominantes. Essas funções se realizariam, em primeiro lugar por meio da igualdade formal estabelecida pela escola entre todos os alunos.
Para Dewey, no entanto, em seu otimismo pedagógico, ela é o oposto. Porém, Dewey representa plenamente os ideais liberais, sem se contrapor aos valores burgueses, acabando por reforçar a adaptação do aluno à sociedade. Bourdieu, no entanto, desmascara essa sociedade e o papel ativo da escola para sua consolidação, segundo Nogueira e Nogueira (2002, p. 19).
Diante de tais teorias, é possível constatar o que é realidade e o que é utopia. Assim, o discurso bourdieusiano está mais próximo da realidade atual no que diz respeito à educação, enquanto que nas falas de Dewey observam-se as utopias do que seria uma escola mais próxima do ideal.
Bourdieu ainda afirma que a ação das estruturas sociais sobre o comportamento individual se dá predominantemente de dentro para fora e não o inverso, e que os indivíduos incorporariam um conjunto de disposições para a ação em suas posições na estrutura social, o que ele denomina habitus. Resumidamente, a estrutura social conduziria as ações individuais e tenderia a se reproduzir através delas, mas sem ser um processo rígido, direto ou mecânico, conforme nos explicam Nogueira e Nogueira (2002, p. 6-7)
Assim, o habitus, ou seja, a bagagem cultural (e capital) do aluno define e influencia o maior ou menor impacto na definição do destino escolar. Para o autor, então, a ausência de interações com situações de leitura e escrita, por exemplo, é crucial na definição do tempo escolar. Para Nogueira e Nogueira (2002, p. 32) a contribuição maior dada por Bourdieu foi a de ter desvelado que a escola não é neutra e que as chances que oferece são desiguais.
A partir dessa leitura, podemos ver em Bourdieu uma aproximação à necessidade de respeito a ritmos de aprendizagem, levando-se em conta o meio social em que se inserem os alunos, tão amplamente discutidos nos últimos anos. Seria então uma justificativa para a progressão continuada? Ou mais, estaria na perspectiva bourdieusiana um traço marcante que levaram aos estudos sobre a diversidade cultural?
Entender a escola como uma instituição não neutra, com chances desiguais, é também afirmar, entrelinhas, que há uma diversidade neste ambiente, e que os grupos são socialmente e culturalmente diferentes.
A questão da ‘pessoalidade’ é essencial , ou seja, constitui o fundamento de toda ação educativa. Conhecer-se a si mesmo, conhecer o outro, contrapor-se ao mundo e ao(s) outro(s), ser capaz de interagir numa contínua construção de identidade. Aqui está a dimensão ética do processo educativo, a responsabilização do indivíduo, a garantia assim conseguida de liberdade pessoal, a afirmação dos valores e a sua concretização efetiva em práticas de aprendizagem, em práticas de vida.
Os conceitos de identidade individual, de grupo, social, nacional, internacional, ou outros, tal como os conceitos de interação e de participação (ou as atitudes que representam), são fundamentais na contextualização do saber, do ser e do saber estar.
Assim, aceitar a escola como ambiente de heterogeneidade, é sem dúvida, aproximar-se da utopia de torná-la democrática, de quebrar seu caráter excludente e opressor, de transpor a concepção arcaica e elitista de ensino, a sua parcialidade.
A utopia cria um espaço entre as possibilidades e a realidade. E dentro desse espaço é que o homem age e se realiza. De certa forma, o homem começa a ver diferente a partir da utopia e do projeto que o entusiasmam. Diante disso, a possibilidade de pensar para além da “ordem das coisas” é um dos elementos centrais da emancipação humana, pois, apesar dos condicionamentos sociais e culturais das sociedades divididas em classes, há um espaço de reflexão e ação autônoma que permite a construção de uma consciência acerca da dominação vigente com potencial de superá-la.
Então, diante da afirmativa de Bourdieu de que a escola é a reprodução e a legitimação da dominação exercida pelas classes dominantes, todo professor precisa conhecer os processos do ato desta reprodução e, por sua vez, saber se ele reproduz e, se ele tem consciência de que reproduz, como reproduz e por que reproduz.
E como o professor pode ter consciência de que reproduz?
Na medida em que passa a ter consciência de que a dominação de uns indivíduos sobre outros acontece através das relações de poder que se estabelecem no interior da escola, e que se revelam cotidianamente nas práticas autoritárias e conservadoras. E admitindo que é uma questão de postura, frente às práticas pedagógicas que adota.
Por conseguinte, se o professor quiser deixar de ser reprodutor de desigualdades, precisa compreender como se dá essa reprodução na escola como um todo, na sala de aula; precisa, igualmente, compreender como se desenvolve sua prática pedagógica, se repetitiva, mecânica, fator de reprodução das relações que se estabelecem no interior da escola em qualquer nível e, mais estreitamente, na sala de aula, relações estas que contribuem para o fracasso ou o sucesso do processo ensino-aprendizagem.
Assim, devem-se realizar as escolhas certas antes que as janelas se fechem, e, por outro lado, comprometer-se em efetivá-las já, porque se têm os direitos de cidadania de atingir a escola que se quer para hoje, não é mais suficiente acalentar os sonhos ao embalo dos discursos que a desenham somente para o amanhã.
Por isso, é possível sim sonhar com uma escola neutra, imparcial, pois a utopia é essencial porque alimenta o homem em sua busca do ideal, do inatingível. Sem utopia não há história e tudo vira banalidades, nas palavras de Habermas (1987, p.111): “quando secam os oásis utópicos estende-se um deserto de banalidades e perplexidade.”
Referências

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