sábado, 13 de março de 2010

Escola em tempo integral

Talvez seja o maior desafio até agora apresentado em minha trajetória profissional: o "fazer pedagógico" na escola que "renasce" numa perspectiva de escola em tempo integral. Como não poderia deixar de ser, o "fazer pedagógico" não deve estar desvinculado do "pensar pedagógico", logo, de seu ideário e de seu "além de". Assim, penso ser indispensável o registro de algumas reflexões sobre as concepções que permeiam o que seja, de fato, educação em tempo integral. Ao pretender trazer, de forma breve, os conceitos que sustentam as discussões sobre o tema, busco elaborar meu pensamento para que o "fazer pedagógico" a que me refiro, se torne possível e deixe de ser um "amontoado de improvisos".
Para esta elaboração de pensamento, trarei, aos poucos, alguns trechos de uma pesquisa realizada por Freitas e Galter (2007) sobre a temática, ainda não pretendendo concluir nem tampouco definir qual seja a que tem se delineado na experiência que por ora tenho vivido. Pretendo sim, registrar o percurso da construção de meu pensamento e das teorias que tenho me fundamentado para que, aliada à prática, essa construção se efetive.
No início de seus trabalhos, os autores a que me refiro assim se expressam: "Quando se discute a educação em tempo integral, é preciso deixar claro sobre qual conceito estamos falando: educação em período integral, educação integral ou educação integrada. Suas definições expressam diferentes concepções de sociedade e precisam ser esclarecidas, pois aparecem mescladas nos discursos. No entanto, há que serem analisadas separadamente".
Dito isso, poderíamos sinteticamente definir cada uma das propostas, ainda de acordo com Freitas e Galter (2007) da seguinte forma:

Educação em período integral em perspectiva histórica

"A educação em tempo integral não é uma novidade histórica. Quando a escola se constituía como privilégio de uma pequena parcela da população e era voltada para a formação dos quadros dirigentes da sociedade, a tarefa educativa era realizada em período integral". Tal modelo tem relação com a ideia trazida por Manuel Antônio de Almeida e Raul Pompéia em suas obras "Memórias de um sargento de milícias" e "O Ateneu", respectivamente. "A escola ilustrada tanto na obra de Antônio de Almeida, quanto na de Pompéia, demonstram uma educação que ocorria em tempo integral e que era voltada para uma elite brasileira. Esse modelo escolar, bastante limitado socialmente, permaneceu até a década de 20 e 30 do século XX. Quando, porém, transformações no modelo econômico brasileiro determinam as demandas por uma escola universal, reduz-se, então, a jornada diária, inclusive a própria duração da escola primária passa a ser questionada como uma das condições para poder estendê-la a toda a população [...] Para além da discussão do tempo da jornada diária, é preciso, também, apontar alguns elementos referentes à concepção de educação. Ao lado daquelas instituições elitistas, o século XIX, traz também discursos de uma educação integral. [...] Por volta de 1830, Bakunin apresenta na Rússia a concepção de educação integral. No entanto, essa proposta era para um modelo de sociedade onde não existisse classes. Nessa sociedade idealizada, o ensino integral seria um aliado para consolidar a liberdade dos trabalhadores, por meio de uma educação científica, compreendendo também o ensino industrial ou prático. [...] A concepção integral aparece aqui mais vinculada, a uma questão de formação abrangente de todos os aspectos humanos, e não se referindo especificamente a tempo integral. Porém, seria impossível essa formação nos moldes da escola que foi universalizada no século XX, que chegou a ter até 3 horas diárias de estudo. Uma formação integral implica em o aluno permanecer mais tempo envolvido com a sua educação, ainda que não seja o tempo todo na escola, pois existem outros espaços em que a sua formação pode ser completada (ginásios, espaços culturais, locais de lazer, etc.). [...] Para Marx, a educação na sociedade capitalista atende aos interesses do capital. Ela é determinada pela forma como se organizam as relações sociais mais amplas. Nesse sentido, a lógica da educação no capitalismo é voltada para a produção, para aumentar os lucros, objetivando o interesse da classe privilegiada: a burguesia. Nesse sistema, inclusive, o conhecimento é concebido como uma propriedade privada. Desenvolve-se então, apenas uma das potencialidades do sujeito, aquela voltada para o econômico. A educação escolar da sociedade capitalista forma então, o “homem unilateral”. Ao propor uma educação, Marx, assim como Bakunin, sugerem-na para uma sociedade onde não haja divisão de classes e sem a propriedade privada dos meios de produção. Ele defende uma formação para que o homem tenha todas as suas potencialidades desenvolvidas, não apenas aquela voltada para a produção".

Minhas reflexões não param aqui. O trabalho dos autores ainda nos trazem para experiências mais recentes que se concretizaram a partir de outras concepções de homem, mundo e sociedade. Estarei registrando mais adiante sobre isso.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Reflexões sobre "Entre os muros da escola"

-Relações de poder na perspectiva foucaultiana
-Subjetividade e processo de subjetivação
-Poder disciplinar

domingo, 17 de janeiro de 2010

Análise do filme “Entre os muros da escola” na perspectiva dos estudos sobre Michel Foucault


O presente texto tem a perspectiva de trazer para discussão as relações de poder que permeiam as práticas educacionais. Para tal, tomamos como base a obra cinematográfica de Laurent Cantet, inspirada no livro de mesmo nome e de autoria de François Bégaudeau, buscando encadeá-la ao pensamento de Michel Foucault.

Entendemos que a escola tem uma função que a distingue das outras e é parte fundamental na formação das sociedades humanas. A distinção está na sistematização, no processo formativo que visa inculcar valores, ensinamentos e normas, mediando e procurando formas para que os saberes historicamente produzidos sejam apropriados pelos alunos.

Ao buscar entender o porquê dos saberes, Foucault (1990a) explica sua existência e suas transformações como dispositivos de relações de poder, diferente do poder exercido pelo Estado. Embora articulado com o aparelho de Estado, é um poder não absorvido por este. Foucault (2001) identifica este tipo de poder como poder disciplinar.

Foucault (2001) esclarece que a disciplina distribui os indivíduos no espaço, estabelece mecanismos de controle da atividade, programa a evolução dos processos e articula coletivamente as atividades individuais. Assim, o poder disciplinar que caracteriza a estrutura e o funcionamento de instituições, de modo particular, a escola, constitui-se por dispositivos como o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame. Podemos sobremaneira observar, em inúmeras cenas do filme, exemplos que nos dão a possibilidade de melhor compreensão do que representam tais recursos coercitivos no espaço escolar, em especial na sala de aula.

Para mostrar que existe a língua coloquial e a culta, quando indagado sobre alguns alunos a respeito do desuso de tal formação gramatical, o professor exemplifica relatando um momento que teve com amigos, em um bar, na noite anterior, quando se utilizavam do imperfeito do subjuntivo para conversar. Portanto, o professor fala assim, e isso é a regra, independente da realidade de seus alunos, tampouco de seu meio cultural. O imperfeito do subjuntivo existe e resiste para o mundo de professores. Neste momento do filme, observamos a hierarquia que se estabelece entre as condutas de uma classe (intelectual) frente a outras, especificamente ali, a formada por filhos de imigrantes malineses, chineses, marroquinos, argelinos, caribenhos e alguns poucos franceses da classe popular. As expressões do professor, indicando superioridade, são perfeitamente compreendidas pelas palavras de Foucault (2001).

Assim entendido, podemos também trazer exemplos em que observamos a rede de relações num sentido hierarquicamente oposto, de baixo para cima, sustentando as relações de poder que se estabelecem naquele espaço educativo.

Na batalha campal que se trava, o professor tem que ter jogo de cintura, coragem para provocar e resolver conflitos. Para instigar os alunos, ouvi-los, seduzi-los, enraivecê-los e levá-los, sobretudo à aceitação de si próprios. Todos nasceram na França, mas não consideram aquela pátria como suas. São estrangeiros em seu próprio país. Mesmo quando a voz dos seus alunos se volta contra ele, o professor tem a coragem de enfrentar a declaração de guerra em que se viu envolvido e certamente os envolveu. Demonstra cansaço, irritação, ao mesmo tempo em que erra por diversas vezes, tomando atitudes contraditórias, um misto de enfrentamentos e conciliações, justificando pra si e pra outros profissionais da escola, as ações dos alunos, mas não admitindo isso diretamente para eles.

Numa determinada cena, um aluno diz desconhecer o significado da palavra austríaco. É tripudiado por uma colega e o professor, ao tomar sua defesa, ridiculariza a menina. Diz que a palavra pronunciada é mesmo insignificante, desnecessária, e que a Áustria é um país pequenino e sem importância. Seus comentários são repletos de preconceito e, frente a um grupo em constante ebulição, finaliza com um: “Vocês por acaso sabem de alguém relevante que tenha nascido na Áustria?” Um menino negro responde que sim, falando o nome completo de Mozart. A resposta, ao invés de satisfazer o professor, bate de encontro com a sua presumível tese (a ignorância de vocês não deve permitir que saibam de algum austríaco relevante). Prontamente, o professor ironiza o sotaque do aluno ao falar Wolfgang, priorizando a forma em detrimento ao conhecimento que ali se demonstrava haver. Aqui podemos nitidamente perceber o que Foucault (1999a) explicita a respeito da atitude do professor que impõe seu saber, enquanto poder, subjugando outra possibilidade que não a dele única e exclusivamente deter este saber, pois “nada pode existir como um elemento do conhecimento se, por um lado, não se conforma a uma série de regras e características constrangedoras [...], e, por outro, se não possui os efeitos da coerção” (FOUCAULT, 1990b, p. 53-54).

Assim, o conhecimento é um elemento definidor da operação do poder tal como ele se dá hoje na civilização ocidental, e nela a escola. Mas é importante acrescentar: onde há poder, há resistência. E é o que podemos ver durante todo o filme, retratando de forma fidedigna as relações entre os muros da escola. Cenas que também indicam que ali, neste ambiente educativo, nitidamente marcado por uma configuração social estabelecida, há uma função precípua de contribuir para que se formem sujeitos.

E, na construção de subjetividades se refletem os comportamentos, as atitudes e os discursos dos sujeitos, permeado pelas relações de sujeição, que Foucault (1999b) nos esclarece com maior propriedade em seus estudos.

Ainda trazendo as cenas do filme, podemos refletir com o autor os aspectos das relações de sujeição (ou as resistências que se revelam) exemplificando o momento em que François, o professor, pede para uma das alunas fazer uma leitura do livro que então está sendo interpretado, e esta se nega. O professor então compra a briga ali deflagrada (diríamos por ele próprio). A menina resiste, não quer ler em voz alta. Não se dando por vencido, insiste, rotula a menina de insolente e pede para falar com ela ao final da aula. Entendemos então que há aí o que Foucault (1997) esclarece, isto é, onde há resistência há uma relação de poder.

Então, precisamos estar atentos às lógicas que embasam as relações de poder exercitadas, uma vez que elas produzem, dentre seus efeitos, determinados tipos de resistência. O que nos remete às características da escola atual, principalmente a pública, com dificuldades expressadas por relações que se manifestam, desde a agressão física entre alunos e destes em professores. Podem ser considerados modos de enfrentamento em meios aos quais se acham implícitas as tentativas de mostrar quem tem poder. No caso das agressões a professores por alunos, trata-se de tentativas de inversão de poder, ainda que de modo espúrio.

É o que acontece após o conselho de classe, no qual houve a participação de duas alunas daquela classe. Quando as meninas relatam aos colegas comentários de François, o professor perde completamente o bom-senso e diz que tal comportamento é típico de vagabundas. Tão logo lhe escapa o discurso absurdo, acomete-se do erro. Porém, ao invés de desculpar-se e assumir a falha semântica, recomeça com sua postura característica, invertendo os papéis e acusando os alunos de não entenderem a sua colocação. Este momento é caracterizado por um clima de tensão dentro da turma que só aumenta no decorrer do filme. O episódio então se inicia numa agressão verbal e resulta em outras, tanto verbal quanto física (esta última mesmo que não intencional) e gera a expulsão de um dos alunos. Assim, em cada relação que o professor busca manter, menos consegue conter aqueles alunos, e mais o conflito fica iminente.

Trazendo a ficção para a realidade, comportamentos sobremaneira adversos por parte dos alunos podem revelar que as formas tradicionais de exercício de poder, que se traduzem em saberes/conhecimentos ensinados na escola não estão sendo eficientes. Poderíamos falar em necessidade de revisão de formas de exercício de poder pela escola, pelos professores, a fim de poderem lidar com aqueles saberes, de modo a poder entendê-los para interpretá-los em relação às suas causas e consequente significado para os alunos. Outro aspecto estaria nos modos de lidar com saberes tradicionalmente veiculados pela escola. Seria importante que professores discutissem modos de responsabilizar os alunos no processo de apreensão de saberes ante o desafio de significá-los desde o que eles já sabem. Provavelmente, neste aspecto, precisaremos recuperar a compreensão de que as relações que os alunos e professores travam entre si são sumamente mediadas por saberes, conhecimentos. Estes põem os sujeitos em permanente interação entre eles e estes com os saberes, afinal não há saber sem poder e vice-versa, nem sujeitos independentes desta relação. Foucault (1995) considera que o poder produz saber. Nessa perspectiva, o poder tende a ser ressignificado entre alunos e professores, na medida em que os saberes possam adquirir outros sentidos, entre eles, os de suas relações com a vida dos sujeitos, em particular dos alunos.

É fato, em qualquer circunstância que venhamos a analisar, na vida real ou na ficção do filme que buscamos retratar, que estamos diante de sinais de resistência a certo tipo de poder (o da escola no bojo de suas práticas) sendo então preciso ouvir o que a voz da resistência nos quer dizer, afirmação esta que nos respaldamos na argumentação de Foucault (2006).

É necessário, então, olharmos as relações internas da escola para que possamos captar as tensões, os conflitos, as resistências e os apoios. Captando as resistências e os esforços desenvolvidos que tentam dissociar essas relações estaremos, conforme nos diz Foucault (1995), compreendendo em que consiste uma relação de poder, e em que medida esta se articula com o saber.

Como a cena final em que o professor François pergunta aos alunos o que aprenderam naquele ano, um a um, vão citando algumas matérias, algumas fórmulas. Nenhum fala do professor, e ele fica perceptivelmente decepcionado. Caso perdido, talvez pense ele. Todos saem da sala de aula, mas uma menina que pouco aparece no filme diz: “Professor, eu não aprendi nada.”

Assim compreendido, é preciso ter claro que ao deixar as marcas de opressão e repressão, o poder pode vir a assumir um sentido emancipador, pois também é passível de produzir relações entre a verdade e o saber. (FOUCAULT, 1995). Talvez nisso se encontre o que tanto angustia as escolas nos últimos tempos: a aprendizagem que não tem ocorrido da maneira como se espera ou como de fato deveria estar ocorrendo. O poder que se estabelece na organização escolar é fatalmente opressor, encerra-se em práticas homogeneizantes, excludentes e hierárquicas, com vistas a vigiar para punir. (FOUCAULT, 2001).

Desta forma, entendemos que a escola, organização que traz historicamente entre seus muros um conjunto de valores identitários representativos também de relação de forças, de relações de poder, de relações subjetivas, enfim, requer uma nova forma de pensar-se enquanto instituição social.

E, na tentativa de repensar o contexto no qual a organização escolar se institui enquanto espaço educativo, e a forma como se dão as práticas ali introduzidas, o filme “Entre os muros da escola” traz, indubitavelmente, muitas questões pertinentes. Desde aspectos de postura profissional propriamente dita, que podem inclusive trazer pontos de vistas diversos, dado as contradições ali expressas, como aspectos que envolvem estudos sobre cultura escolar no âmbito da historiografia, multiculturalismo, processos cognitivos, aprendizagem escolar, desenvolvimento humano, entre tantas outras investigações que tratem do fenômeno educativo.

Referências

sábado, 16 de janeiro de 2010

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Realidade e utopia em educação

As tendências pedagógicas têm basicamente sua origem em movimentos sociais, filosóficos e antropológicos em determinados momentos da história humana, e terminam assim por influenciar as práticas pedagógicas associadas às expectativas da sociedade. Neste caso é importante o conhecimento de tais tendências a fim de se construir conscientemente uma trajetória político-pedagógica própria. Somente a partir deste conhecimento, e de autoconhecimento é que se poderá propor mudanças a fim de transformar fazeres e saberes, problematizando-os, inserindo-os no cotidiano e na própria expressão do profissional da educação.
Assim, este texto tem por objetivo confrontar as teorias de Bourdieu e Dewey, além de levantar questionamentos e tentativas de aproximações com a questão da diversidade cultural, expressa na Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (2002) aprovada pela UNESCO.
Bourdieu declara que a escola é uma instituição de legitimação de privilégios, segundo a leitura de Nogueira e Nogueira (2002, p. 17), afirmação que é, acima de tudo, uma constatação. Trata-se, portanto, de uma inversão total de ponto de vista em relação à Dewey, que concebe a educação como uma doutrina pedagógica específica da sociedade democrática. O modelo democrático do qual fala Dewey é o da igualdade das oportunidades, não o da igualdade entre os homens.
Se para Bourdieu a escola não é uma instituição imparcial que seleciona meramente os mais talentosos a partir de critérios objetivos, para Dewey a escola é o instrumento ideal para estender para todos os indivíduos os seus benefícios, tendo a educação uma função democratizadora de igualar as oportunidades. A escola seria na perspectiva deweyana, uma instituição neutra, que difundiria um conhecimento racional e objetivo e que selecionaria seus alunos com base em critérios racionais.
Bourdieu questiona com franqueza impiedosa a neutralidade da escola e do conhecimento dela advindo, sustentando que o que ela representa e exige dos alunos são os gostos, as crenças, as posturas e os valores dos grupos dominantes, dissimuladamente apresentados como cultura universal.
Dewey vê a educação como uma necessidade social, onde os indivíduos precisam ser educados para que se assegure a continuidade social, transmitindo suas crenças, idéias e conhecimentos. Ele vê a escola voltada aos reais interesses dos alunos, valorizando sua curiosidade natural.
Em linhas gerais, para Bourdieu (1998, p. 53) a escola é uma instituição a serviço da reprodução e legitimação da dominação exercida pelas classes dominantes. Essas funções se realizariam, em primeiro lugar por meio da igualdade formal estabelecida pela escola entre todos os alunos.
Para Dewey, no entanto, em seu otimismo pedagógico, ela é o oposto. Porém, Dewey representa plenamente os ideais liberais, sem se contrapor aos valores burgueses, acabando por reforçar a adaptação do aluno à sociedade. Bourdieu, no entanto, desmascara essa sociedade e o papel ativo da escola para sua consolidação, segundo Nogueira e Nogueira (2002, p. 19).
Diante de tais teorias, é possível constatar o que é realidade e o que é utopia. Assim, o discurso bourdieusiano está mais próximo da realidade atual no que diz respeito à educação, enquanto que nas falas de Dewey observam-se as utopias do que seria uma escola mais próxima do ideal.
Bourdieu ainda afirma que a ação das estruturas sociais sobre o comportamento individual se dá predominantemente de dentro para fora e não o inverso, e que os indivíduos incorporariam um conjunto de disposições para a ação em suas posições na estrutura social, o que ele denomina habitus. Resumidamente, a estrutura social conduziria as ações individuais e tenderia a se reproduzir através delas, mas sem ser um processo rígido, direto ou mecânico, conforme nos explicam Nogueira e Nogueira (2002, p. 6-7)
Assim, o habitus, ou seja, a bagagem cultural (e capital) do aluno define e influencia o maior ou menor impacto na definição do destino escolar. Para o autor, então, a ausência de interações com situações de leitura e escrita, por exemplo, é crucial na definição do tempo escolar. Para Nogueira e Nogueira (2002, p. 32) a contribuição maior dada por Bourdieu foi a de ter desvelado que a escola não é neutra e que as chances que oferece são desiguais.
A partir dessa leitura, podemos ver em Bourdieu uma aproximação à necessidade de respeito a ritmos de aprendizagem, levando-se em conta o meio social em que se inserem os alunos, tão amplamente discutidos nos últimos anos. Seria então uma justificativa para a progressão continuada? Ou mais, estaria na perspectiva bourdieusiana um traço marcante que levaram aos estudos sobre a diversidade cultural?
Entender a escola como uma instituição não neutra, com chances desiguais, é também afirmar, entrelinhas, que há uma diversidade neste ambiente, e que os grupos são socialmente e culturalmente diferentes.
A questão da ‘pessoalidade’ é essencial , ou seja, constitui o fundamento de toda ação educativa. Conhecer-se a si mesmo, conhecer o outro, contrapor-se ao mundo e ao(s) outro(s), ser capaz de interagir numa contínua construção de identidade. Aqui está a dimensão ética do processo educativo, a responsabilização do indivíduo, a garantia assim conseguida de liberdade pessoal, a afirmação dos valores e a sua concretização efetiva em práticas de aprendizagem, em práticas de vida.
Os conceitos de identidade individual, de grupo, social, nacional, internacional, ou outros, tal como os conceitos de interação e de participação (ou as atitudes que representam), são fundamentais na contextualização do saber, do ser e do saber estar.
Assim, aceitar a escola como ambiente de heterogeneidade, é sem dúvida, aproximar-se da utopia de torná-la democrática, de quebrar seu caráter excludente e opressor, de transpor a concepção arcaica e elitista de ensino, a sua parcialidade.
A utopia cria um espaço entre as possibilidades e a realidade. E dentro desse espaço é que o homem age e se realiza. De certa forma, o homem começa a ver diferente a partir da utopia e do projeto que o entusiasmam. Diante disso, a possibilidade de pensar para além da “ordem das coisas” é um dos elementos centrais da emancipação humana, pois, apesar dos condicionamentos sociais e culturais das sociedades divididas em classes, há um espaço de reflexão e ação autônoma que permite a construção de uma consciência acerca da dominação vigente com potencial de superá-la.
Então, diante da afirmativa de Bourdieu de que a escola é a reprodução e a legitimação da dominação exercida pelas classes dominantes, todo professor precisa conhecer os processos do ato desta reprodução e, por sua vez, saber se ele reproduz e, se ele tem consciência de que reproduz, como reproduz e por que reproduz.
E como o professor pode ter consciência de que reproduz?
Na medida em que passa a ter consciência de que a dominação de uns indivíduos sobre outros acontece através das relações de poder que se estabelecem no interior da escola, e que se revelam cotidianamente nas práticas autoritárias e conservadoras. E admitindo que é uma questão de postura, frente às práticas pedagógicas que adota.
Por conseguinte, se o professor quiser deixar de ser reprodutor de desigualdades, precisa compreender como se dá essa reprodução na escola como um todo, na sala de aula; precisa, igualmente, compreender como se desenvolve sua prática pedagógica, se repetitiva, mecânica, fator de reprodução das relações que se estabelecem no interior da escola em qualquer nível e, mais estreitamente, na sala de aula, relações estas que contribuem para o fracasso ou o sucesso do processo ensino-aprendizagem.
Assim, devem-se realizar as escolhas certas antes que as janelas se fechem, e, por outro lado, comprometer-se em efetivá-las já, porque se têm os direitos de cidadania de atingir a escola que se quer para hoje, não é mais suficiente acalentar os sonhos ao embalo dos discursos que a desenham somente para o amanhã.
Por isso, é possível sim sonhar com uma escola neutra, imparcial, pois a utopia é essencial porque alimenta o homem em sua busca do ideal, do inatingível. Sem utopia não há história e tudo vira banalidades, nas palavras de Habermas (1987, p.111): “quando secam os oásis utópicos estende-se um deserto de banalidades e perplexidade.”
Referências

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010