domingo, 17 de janeiro de 2010

Análise do filme “Entre os muros da escola” na perspectiva dos estudos sobre Michel Foucault


O presente texto tem a perspectiva de trazer para discussão as relações de poder que permeiam as práticas educacionais. Para tal, tomamos como base a obra cinematográfica de Laurent Cantet, inspirada no livro de mesmo nome e de autoria de François Bégaudeau, buscando encadeá-la ao pensamento de Michel Foucault.

Entendemos que a escola tem uma função que a distingue das outras e é parte fundamental na formação das sociedades humanas. A distinção está na sistematização, no processo formativo que visa inculcar valores, ensinamentos e normas, mediando e procurando formas para que os saberes historicamente produzidos sejam apropriados pelos alunos.

Ao buscar entender o porquê dos saberes, Foucault (1990a) explica sua existência e suas transformações como dispositivos de relações de poder, diferente do poder exercido pelo Estado. Embora articulado com o aparelho de Estado, é um poder não absorvido por este. Foucault (2001) identifica este tipo de poder como poder disciplinar.

Foucault (2001) esclarece que a disciplina distribui os indivíduos no espaço, estabelece mecanismos de controle da atividade, programa a evolução dos processos e articula coletivamente as atividades individuais. Assim, o poder disciplinar que caracteriza a estrutura e o funcionamento de instituições, de modo particular, a escola, constitui-se por dispositivos como o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame. Podemos sobremaneira observar, em inúmeras cenas do filme, exemplos que nos dão a possibilidade de melhor compreensão do que representam tais recursos coercitivos no espaço escolar, em especial na sala de aula.

Para mostrar que existe a língua coloquial e a culta, quando indagado sobre alguns alunos a respeito do desuso de tal formação gramatical, o professor exemplifica relatando um momento que teve com amigos, em um bar, na noite anterior, quando se utilizavam do imperfeito do subjuntivo para conversar. Portanto, o professor fala assim, e isso é a regra, independente da realidade de seus alunos, tampouco de seu meio cultural. O imperfeito do subjuntivo existe e resiste para o mundo de professores. Neste momento do filme, observamos a hierarquia que se estabelece entre as condutas de uma classe (intelectual) frente a outras, especificamente ali, a formada por filhos de imigrantes malineses, chineses, marroquinos, argelinos, caribenhos e alguns poucos franceses da classe popular. As expressões do professor, indicando superioridade, são perfeitamente compreendidas pelas palavras de Foucault (2001).

Assim entendido, podemos também trazer exemplos em que observamos a rede de relações num sentido hierarquicamente oposto, de baixo para cima, sustentando as relações de poder que se estabelecem naquele espaço educativo.

Na batalha campal que se trava, o professor tem que ter jogo de cintura, coragem para provocar e resolver conflitos. Para instigar os alunos, ouvi-los, seduzi-los, enraivecê-los e levá-los, sobretudo à aceitação de si próprios. Todos nasceram na França, mas não consideram aquela pátria como suas. São estrangeiros em seu próprio país. Mesmo quando a voz dos seus alunos se volta contra ele, o professor tem a coragem de enfrentar a declaração de guerra em que se viu envolvido e certamente os envolveu. Demonstra cansaço, irritação, ao mesmo tempo em que erra por diversas vezes, tomando atitudes contraditórias, um misto de enfrentamentos e conciliações, justificando pra si e pra outros profissionais da escola, as ações dos alunos, mas não admitindo isso diretamente para eles.

Numa determinada cena, um aluno diz desconhecer o significado da palavra austríaco. É tripudiado por uma colega e o professor, ao tomar sua defesa, ridiculariza a menina. Diz que a palavra pronunciada é mesmo insignificante, desnecessária, e que a Áustria é um país pequenino e sem importância. Seus comentários são repletos de preconceito e, frente a um grupo em constante ebulição, finaliza com um: “Vocês por acaso sabem de alguém relevante que tenha nascido na Áustria?” Um menino negro responde que sim, falando o nome completo de Mozart. A resposta, ao invés de satisfazer o professor, bate de encontro com a sua presumível tese (a ignorância de vocês não deve permitir que saibam de algum austríaco relevante). Prontamente, o professor ironiza o sotaque do aluno ao falar Wolfgang, priorizando a forma em detrimento ao conhecimento que ali se demonstrava haver. Aqui podemos nitidamente perceber o que Foucault (1999a) explicita a respeito da atitude do professor que impõe seu saber, enquanto poder, subjugando outra possibilidade que não a dele única e exclusivamente deter este saber, pois “nada pode existir como um elemento do conhecimento se, por um lado, não se conforma a uma série de regras e características constrangedoras [...], e, por outro, se não possui os efeitos da coerção” (FOUCAULT, 1990b, p. 53-54).

Assim, o conhecimento é um elemento definidor da operação do poder tal como ele se dá hoje na civilização ocidental, e nela a escola. Mas é importante acrescentar: onde há poder, há resistência. E é o que podemos ver durante todo o filme, retratando de forma fidedigna as relações entre os muros da escola. Cenas que também indicam que ali, neste ambiente educativo, nitidamente marcado por uma configuração social estabelecida, há uma função precípua de contribuir para que se formem sujeitos.

E, na construção de subjetividades se refletem os comportamentos, as atitudes e os discursos dos sujeitos, permeado pelas relações de sujeição, que Foucault (1999b) nos esclarece com maior propriedade em seus estudos.

Ainda trazendo as cenas do filme, podemos refletir com o autor os aspectos das relações de sujeição (ou as resistências que se revelam) exemplificando o momento em que François, o professor, pede para uma das alunas fazer uma leitura do livro que então está sendo interpretado, e esta se nega. O professor então compra a briga ali deflagrada (diríamos por ele próprio). A menina resiste, não quer ler em voz alta. Não se dando por vencido, insiste, rotula a menina de insolente e pede para falar com ela ao final da aula. Entendemos então que há aí o que Foucault (1997) esclarece, isto é, onde há resistência há uma relação de poder.

Então, precisamos estar atentos às lógicas que embasam as relações de poder exercitadas, uma vez que elas produzem, dentre seus efeitos, determinados tipos de resistência. O que nos remete às características da escola atual, principalmente a pública, com dificuldades expressadas por relações que se manifestam, desde a agressão física entre alunos e destes em professores. Podem ser considerados modos de enfrentamento em meios aos quais se acham implícitas as tentativas de mostrar quem tem poder. No caso das agressões a professores por alunos, trata-se de tentativas de inversão de poder, ainda que de modo espúrio.

É o que acontece após o conselho de classe, no qual houve a participação de duas alunas daquela classe. Quando as meninas relatam aos colegas comentários de François, o professor perde completamente o bom-senso e diz que tal comportamento é típico de vagabundas. Tão logo lhe escapa o discurso absurdo, acomete-se do erro. Porém, ao invés de desculpar-se e assumir a falha semântica, recomeça com sua postura característica, invertendo os papéis e acusando os alunos de não entenderem a sua colocação. Este momento é caracterizado por um clima de tensão dentro da turma que só aumenta no decorrer do filme. O episódio então se inicia numa agressão verbal e resulta em outras, tanto verbal quanto física (esta última mesmo que não intencional) e gera a expulsão de um dos alunos. Assim, em cada relação que o professor busca manter, menos consegue conter aqueles alunos, e mais o conflito fica iminente.

Trazendo a ficção para a realidade, comportamentos sobremaneira adversos por parte dos alunos podem revelar que as formas tradicionais de exercício de poder, que se traduzem em saberes/conhecimentos ensinados na escola não estão sendo eficientes. Poderíamos falar em necessidade de revisão de formas de exercício de poder pela escola, pelos professores, a fim de poderem lidar com aqueles saberes, de modo a poder entendê-los para interpretá-los em relação às suas causas e consequente significado para os alunos. Outro aspecto estaria nos modos de lidar com saberes tradicionalmente veiculados pela escola. Seria importante que professores discutissem modos de responsabilizar os alunos no processo de apreensão de saberes ante o desafio de significá-los desde o que eles já sabem. Provavelmente, neste aspecto, precisaremos recuperar a compreensão de que as relações que os alunos e professores travam entre si são sumamente mediadas por saberes, conhecimentos. Estes põem os sujeitos em permanente interação entre eles e estes com os saberes, afinal não há saber sem poder e vice-versa, nem sujeitos independentes desta relação. Foucault (1995) considera que o poder produz saber. Nessa perspectiva, o poder tende a ser ressignificado entre alunos e professores, na medida em que os saberes possam adquirir outros sentidos, entre eles, os de suas relações com a vida dos sujeitos, em particular dos alunos.

É fato, em qualquer circunstância que venhamos a analisar, na vida real ou na ficção do filme que buscamos retratar, que estamos diante de sinais de resistência a certo tipo de poder (o da escola no bojo de suas práticas) sendo então preciso ouvir o que a voz da resistência nos quer dizer, afirmação esta que nos respaldamos na argumentação de Foucault (2006).

É necessário, então, olharmos as relações internas da escola para que possamos captar as tensões, os conflitos, as resistências e os apoios. Captando as resistências e os esforços desenvolvidos que tentam dissociar essas relações estaremos, conforme nos diz Foucault (1995), compreendendo em que consiste uma relação de poder, e em que medida esta se articula com o saber.

Como a cena final em que o professor François pergunta aos alunos o que aprenderam naquele ano, um a um, vão citando algumas matérias, algumas fórmulas. Nenhum fala do professor, e ele fica perceptivelmente decepcionado. Caso perdido, talvez pense ele. Todos saem da sala de aula, mas uma menina que pouco aparece no filme diz: “Professor, eu não aprendi nada.”

Assim compreendido, é preciso ter claro que ao deixar as marcas de opressão e repressão, o poder pode vir a assumir um sentido emancipador, pois também é passível de produzir relações entre a verdade e o saber. (FOUCAULT, 1995). Talvez nisso se encontre o que tanto angustia as escolas nos últimos tempos: a aprendizagem que não tem ocorrido da maneira como se espera ou como de fato deveria estar ocorrendo. O poder que se estabelece na organização escolar é fatalmente opressor, encerra-se em práticas homogeneizantes, excludentes e hierárquicas, com vistas a vigiar para punir. (FOUCAULT, 2001).

Desta forma, entendemos que a escola, organização que traz historicamente entre seus muros um conjunto de valores identitários representativos também de relação de forças, de relações de poder, de relações subjetivas, enfim, requer uma nova forma de pensar-se enquanto instituição social.

E, na tentativa de repensar o contexto no qual a organização escolar se institui enquanto espaço educativo, e a forma como se dão as práticas ali introduzidas, o filme “Entre os muros da escola” traz, indubitavelmente, muitas questões pertinentes. Desde aspectos de postura profissional propriamente dita, que podem inclusive trazer pontos de vistas diversos, dado as contradições ali expressas, como aspectos que envolvem estudos sobre cultura escolar no âmbito da historiografia, multiculturalismo, processos cognitivos, aprendizagem escolar, desenvolvimento humano, entre tantas outras investigações que tratem do fenômeno educativo.

Referências

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